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Nunca conseguiu viver longe do mar. A sua adolescência ficara cheia de dunas e de camarinhas, de falésias e águias, de tempestades, de nomes de barcos e de peixes; de aves e de luz coalhada à roda duma ilha. Conhecera a ansiedade daqueles que, ao entardecer, olham meio cegos a vastidão incendiada do oceano  e ninguém sabe se esperam alguma coisa, alguma revelação, ou se estão ali sentados, apenas, para morrer. Aprendera, também, que o mar, aquele mar  tarde ou cedo  só existiria dentro de si: como uma dor afiada, como um vestígio qualquer a que nos agarramos para suportar a melancólica travessia do mundo. Depois, partiu para longe. E durante anos recordou, em sonhos, o mar avistado pela última vez ao fundo das ruas. Procurou-o sempre por onde andou, obsessivamente  mas nunca chegou a encontrá-lo. Certa noite de bruma fria, em Antuérpia, no "Zanzibar", julgou ouvir o mar que perdera na voz dum jovem marinheiro grego. Mas não, o barulho que aquela voz derramava, junto à sua orelha, era de outro mar  fechado, calmo  propício aos amores inquietos e à lassidão embriagante do sol e do vinho. Anos mais tarde, em Delos, haveria de reconhecer a voz do marinheiro no rebentar das ondas, em redor da ilha, como um eco: "onde te vi despir regresso agora / para adormecer ou chorar" e a noite caiu subitamente sobre ele, sobre a ilha e sobre o sonolento coração das leoas em pedra. Uma outra vez, perto de Gibraltar, uma mulher idosa quis ler-lhe as linhas emaranhadas da mão. Já não se lembra o que lhe contou a mulher, acerca da vida e dos rumos da paixão. Recorda somente o que ela lhe disse ao separarem-se: - Tens nos olhos a cor triste do mar que perdeste. E passou bastante tempo antes que o homem voltasse ao seu país. Quando o fez, foi ao encontro do mar. Largou a cidade e os amigos, a casa, o conforto, a noite, o trabalho e tudo o mais. Viajou em direcção ao sul, com a certeza de que jamais encontraria o mar perdido, em lugar incerto, a meio da sua vida. Sabia agora que nenhum mar existia fora do seu corpo, e que tinha sido na perda irremediável de um mar que adquirira um outro onde, por noites de inquietante insónia, podia encontrar-se consigo mesmo e envelhecer sem sobressaltos; afastado da vã alegria dos homens e da pobreza do mundo. Ao chegar junto do mar sentou-se no cimo da duna, como dantes, e esperou. Esperou que o mar guardado no fundo de si transbordasse, e fosse ao encontro daquele que perdera e se espraiava agora à sua frente. Ainda hoje permanece sentado, no mesmo lugar – esperando o instante em que os dois mares se dissiparão um no outro, para sempre. Está cansado da guerra com as palavras e do veneno dos homens, tem os olhos queimados pelo sal. Os dedos adquiriram a rugosidade da areia e dos rochedos; da sua boca solta-se um marulhar surdo, muito antigo, que os dias e a solidão arrastam devagar para a luminosa euforia das águas. Nunca mais o lembraremos Um dia, em frente ao mar, ele pensou: Se me apagasse neste preciso instante, o mundo pouco se importaria com isso. No entanto, deixaria de ser o mesmo: seria um mundo com todas as coisas que conheci e toquei, mas sem mim. E eu, algures na morte, é pouco provável que levasse comigo alguma coisa do mundo. Seria um homem morto, sem mundo, definitivamente só. Depois, não lhe agradou saber que o mundo, apesar da sua morte, conservaria por muito tempo os vestígios da sua passagem. Desejou, uma vez mais, que tudo o que escrevera até àquele instante se apagasse também, e que do seu nome não restasse uma sílaba. Pensou em tudo isto sem amargura, porque havia nele dois mistérios insolúveis: viver e escrever. E ambos estavam tão intimamente ligados que, provavelmente, se conseguisse desvendar um deles, o outro sê-lo-ia também. Mas acontece que tinha tentado fazer da sua vida uma obra tão intensa quanto a obra escrita. Por vezes diluíam-se uma na outra, confundiam-se, tão próximas ou afastadas estavam. E tanto na vida como na escrita, um mesmo desejo o animava: caminhar em direcção à sabedoria última do silêncio  a memória total do mundo. O pior é que sempre que avançava alguns passos na direcção certa, desiludia-se. A harmonia com o mundo e com o seu próprio corpo continuava inacessível; e outras ignorâncias surgiam, outras trevas o cegavam. O que parecia estar perto, repentinamente, ficava fora do alcance. Apesar de tudo, com o avançar lento da idade pressentia, algures dentro de si, um ser de lume  um anjo mudo que o iluminava, revelando-lhe aquilo que devia ou não silenciar. E quando esse ser o fazia sentir árvore ou pássaro, todo o talendo da árvore e o nocturno voo do pássaro escorriam em si. E se a sensação de mar lhe era transmitida, ele sabia que era um mar muito mais remoto e vasto que aquele que diante de si se movia. Respirava fundo, tinha medo, e escrevia como uma condenação  e nessa condenação encontrava um breve alívio para a dor das coisas vivas e mortas que o rodeavam. E o corpo, sempre apaixonado, tremeluzia quando o estranho anjo mudo lhe punha uma voz no coração. Talvez seja por tudo isto que um dia nunca mais o lembraremos, nunca mais. Mas neste preciso instante ele acabou de acordar, abre os olhos, arde, é jovem ainda, e diz-me a sorrir: - Aqui tens o inocente revólver para a eternidade.

 

Al Berto, "O Esconderijo do Homem Triste", O Anjo Mudo, Contexto, Lisboa 1993, pp. 42-45

 

publicado por MariaLua às 18:38