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NOTA DE EDIÇÃO: Esta noite estou triste a vida sabe-me a pão seco (...) a tal Avó de que falo num dos meus primeiros posts (Lágrimas e Estrelas) está doente. Fui vê-la agora ao hospital. Apesar dos seus noventa anos continua a manter viva dentro de si a menina que já foi. Devo-lhe toda a herança de contadora de histórias. (Ela é a melhor contadora de Histórias que conheço e se hoje trabalho nisso devo-o primordialmente a ela!) A minha querida a minha Maria (...). Por isso hoje doeu-me ver o seu corpo a sofrer enquanto os seus olhos me falaram de esperança e de amanhãs floridos. Boas melhoras avozinha.

 

Maria Lua

 

"Eu queria que a vida fosse dividida em quatro estágios, mas que não acabasse nunca. A infância é como a primavera. É pura novidade e tem um calor que não sufoca nem faz pensar asneiras. Tem uma inocência quase pirosa, uma singeleza clássica, e traz no íntimo a certeza de que pela frente vem ai algo de bom. Queremos que passe logo, mas sabemos que nunca mais seremos tão protegidos, a mordomia não será eterna. É quando as coisas acontecem pela primeira vez, é quando num arbusto verde vemos surgir alguns vermelhos, é a surpresa, a primeira de uma série. A adolescência é como o verão. Quente, petulante, libidinosa. Parece que não vai haver tempo para fazer tudo o que se quer e o que se teme. É musical e fotogénica. Dúvidas, dúvidas, dúvidas em frente ao mar. Mergulha-se no profundo e no raso. Pouca roupa, poucas asneiras. Curiosidade. Vontade que dure para sempre, certeza de que passa. Noção do corpo. Festas e religião. Amor e fé. A maturidade é como o outono. Um longo e instável Outono, que alterna dias quentes e frios, que nos emociona e nos constipa. Há mais beleza e o ar é mais seco, porém é quando se colhem os melhores abraços. Ficar sozinho passa a não ser tão aterrorizante. Fugimos para a praia, fugimos para a serra, as ideias aprendem a movimentar-se, a fazer a mala rápido, a mudar de rota se o desejo se impuser, e não é preciso consultar o pai e a mãe antes de errar. É o outono que tentamos conservar. O Inverno é como a velhice. Tem a sua beleza igualmente, exige lã, bolsa de água quente, termómetro e uma janela bem vedada. O que não queremos que entre? Maus presságios. O inverno é frio como a despedida de um grande amor, mas sabemos que tudo voltará a ser ameno. Queremos que passe, temos medo que termine. Ficar sozinho volta a ser aterrorizante. O inverno é branco, é cinzento, é prateado. É grisalho. E, de repente, também passa. Eu queria que tudo fosse verdade, que a vida fosse assim dividida em quatro estágios que mais parecem estações do ano, mas que não acabasse, que depois do inverno viesse outra primavera, e outro verão, e outro outono, que nunca são iguais, mas que se repetem sempre, voltam sempre, são tão certos quanto o sol e a lua, todos os dias, todas as noites. Eu queria..."

 

( Martha Medeiros)

 

publicado por MariaLua às 00:26